Meu nome é Oscar Pucci ou simplesmente o Cascão. Fui um dos primeiros mecânicos pioneiros da Táxi Aéreo Marília. Entrei em 1976 quando tinha apenas nove Bandeirantes, três Learjet e dez Cessna 402. Desde criança tinha o sonho de ser piloto, mas como sou oriundo de família humilde primeiro precisei fazer uma escala de mecânico para depois alçar voos maiores de piloto privado.
Inicialmente trabalhei na Vasp durante três anos, onde realizei o Curso de Mecânico. Tudo que era curso eu fazia. Nunca perdia as oportunidades que surgiam. Fiz curso para o Boeing, para o Bandeirante e Vickers. Foi na VASP que tudo começou.
Depois fui trabalhar no Aeroclube de São Paulo também como mecânico, metade do meu salário eu usava para pagar minhas horas de voo e estava perseguindo o meu sonho. Foi mais um passo para minha longa jornada para ser certificado como piloto, onde em 1964 terminei meu curso Técnico de Piloto Privado.
Tempos depois houve uma reestruturação no aeroclube e fui desligado. Foi quando fui ao antigo Aeroporto de Congonhas e soube que a TAM estava procurando mecânico de Bandeirante. Realizei um teste e comecei a trabalhar no mesmo dia na empresa que estavam iniciando seus primeiros anos de aviação.
Naquela época tudo era diferente da TAM atual. Era o início de tudo. Trabalhávamos acima de tudo pelo amor a profissão. Não havia ainda os Airbus e os Fokker 100 que vieram tempos depois. Havia muito trabalho a ser realizado e muitas vezes poucas pessoas a realizar.
Alguns mecânicos vieram da VASP junto com os aviões e outros que eram da própria TAM que já trabalhavam nos Cessna e nos Learjet. Do Bandeirantes eu fui o primeiro, apenas existia um eletricista, por isso que comecei a trabalhar já no primeiro dia da seleção. Nem deu tempo para ir para casa comentar com a esposa que já estava contratado. Tudo foi muito rápido. A partir de então, fomos contratando o pessoal e treinando in loco. Foram aprendendo vendo eu trabalhar e com meus ensinamentos direto na prática no motor. Aquela época nem existia DCA e ANAC. Eram outros tempos.
Em 1979 embarquei num Bandeirante junto com outro mecânico e três pilotos da TAM para a Nigéria na África Ocidental, visto que a TAM tinha a pretensão de vender os Bandeirantes e fomos para treinar o pessoal de lá. Por fim o Rolim foi pessoalmente para ver se o negócio sai ou não. Mas acabou não acontecendo.
Nisso mostrei ao comandante vários aviões parados de voar num hangar e ele comentou que seu irmão João iria fazer uma festa com aqueles aviões antigos aposentados. Por fim, voltamos seis meses depois. O melhor dessa viagem foi ter feito um voo intercontinental com o tanque cheio com mil litros de combustível para atravessar o oceano e com o avião projetado pelo mestre Ozires Silva.
Voei muito na TAM para socorrer aviões. Mas não como piloto. Realizei o simulador do Bandeirante na Embraer em São José dos Campos, nesse momento você começa a realizar um sonho acordado. É pura emoção. O negócio fica muito impactante, porque você começa a ver tudo o que havia planejado desde criança irem se concretizando.
E você para e pensa se realmente está acontecendo de verdade. Aquele menino de família humilde começava a decolar de verdade. Em 1986 surgiu a oportunidade de trabalhar também como mecânico no Banco Safra recebendo cinco vezes mais. E são essas oportunidades que você não pode dizer "não" na vida.
Trabalhei muitos anos como mecânico e piloto na aviação executiva. Eu trouxe a bagagem que adquiri na TAM na manutenção e mais a minha como piloto para a minha formação e isso gerou uma ascensão muito rápida na minha vida profissional. Cheguei a voar na TAM com o Bandeirante como copiloto, onde tive como instrutor por dois meses o Comandante Francisco Perez, uma pessoa sensacional e um ótimo profissional. O Perez foi também um dos que construíram a TAM. E fiz durante muitos anos a manutenção do Bandeirante e do Fokker 27.
Para realizar a manutenção do F-27 fui certificado na Inglaterra e na Holanda. Inclusive o meu passaporte tive que fazer em razão da viagem para a Nigéria. E para a Europa realizar o curso na Fokker fui de Boeing pela Air France. Nunca irei esquecer tudo o que a aviação me trouxe. Ver o mundo lá de cima, entrar num avião enorme. Poder pilotar uma aeronave. Imagina para uma pessoa que teve a origem humilde que eu tive, que os pais nem tinham dinheiro para comprar muitas coisas.
Quando chegaram os Fokker 27 passamos a revezar os horários de trabalho, eles voavam o dia todo e a noite paravam para realizar a manutenção no Aeroporto de Congonhas. Existem dois tipos manutenção de um avião. Uma é a "corretiva" e a "preventiva". Da mesma forma são duas equipes distintas para efetuar os trabalhos. Eu sempre preferi trabalhar na equipe "corretiva" e me especializei no Grupo de Propulsão e Hélice.
Ou seja, o avião deu algum tipo de problema e você tem que resolver o problema o mais rápido possível e de forma eficiente para decolar voo. Sempre gostei de estudar e na corretiva no caso de uma pane você tinha que estudar até encontrar o real problema. Não tínhamos os vastos recursos que existem hoje, como por exemplo a tecnologia com avançados aparelhos que identificam os problemas e muito menos a internet. Era tudo na visão, na audição, na experiência, no conhecimento e na sensibilidade.
Na verdade, nós desbravamos não só a aviação na TAM como no Brasil. Já a preventiva funciona basicamente como na revisão de um automóvel quando se leva na concessionária para proceder todas as revisões que o fabricante exige e no avião consiste no mesmo procedimento, porém numa escala muito maior.
Saliento que não são todas as bases ou aeroportos que tem equipes de manutenção. Nestas situações, em 90% dos voos naquela época sempre voava junto por exemplo no Fokker 27 um mecânico para qualquer eventual problema. E dependendo do problema que o avião vinha a dar numa localidade distante, tínhamos que locomover todo o pessoal de manutenção para socorrer o avião e resolver o problema.
Outra realidade do meu tempo era a lentidão para se adquirir as peças de reposição para o Fokker 27 e para o Bandeirante, pois por mais rigoroso que fosse o almoxarifado, nunca poderia se imaginar quais problemas poderiam ocorrer numa aeronave.
Então, o mais frequente era encostar um avião e utilizá-lo como estoque de peças para vários aviões, enquanto todas as peças não chegassem. E quando chegassem, esse voltava a voar. Inclusive era muito complicado o processo de importação de forma geral. Felizmente tudo isso melhorou.
O Comandante Rolim era uma pessoa excepcional, nasceu para ser dono de empresa de aviação. Nunca atrasou um dia o meu pagamento. Era uma pessoa muito humilde, mesmo com o cargo de Presidente que tinha. Inclusive tive um sério problema de saúde dois anos após minha saída da empresa e nos encontramos no hangar da TAM.
Ele fez questão de me dizer que se eu precisasse de qualquer coisa a TAM estaria de portas abertas para ajudar, felizmente não foi necessário. Mas isso demonstra a grandeza que ele sempre teve. O Rolim era austero, porém justo. Conversava com todo mundo e sobre qualquer assunto. Era muito humilde e conversava com todos os níveis de pessoas. O relacionamento interpessoal era muito bom.
Quando eu trabalhava a noite, as vezes aparecia no hangar o comandante Rolim. Ele não tinha hora para aparecer. Muitas vezes surgia depois da meia noite. Cumprimentava todos e sempre muito curioso e querendo aprender alguma coisa. Ficava conversando com a gente um bom tempo e olhando nós trabalhar nos aviões que estávamos fazendo manutenção corretiva. Ele e todos me chamavam do meu codinome "Cascão" que surgiu na época da VASP, onde eu trabalhava num departamento que tinham três meninos que apelidaram de "Mônica", "Magali" e "Cascão".
Que felicidade que me deram o apelido de "Cascão". O mais importante é que o Comandante confiava em sua equipe de profissionais e nos dava a liberdade que nos cabia dentro de nossas responsabilidades para tomar as nossas decisões. Ele nunca questionou minhas decisões como supervisor, pelo contrário sempre respeitou não só as minhas, mas como de todo a equipe.
Ele queria era o avião voando em perfeitas condições de segurança, isso também era sua enorme preocupação, a segurança do equipamento e o Comandante sabia que disso dependia do nosso trabalho. Existia um enorme grau de confiança mútua entre todos os funcionários, ele não atropelava nossas deliberações. Sua curiosidade em compreender os problemas que aconteciam estavam focados em querer saber o porquê que acontecia e como evitá-los novamente.
Nós sabíamos que o Comandante Rolim era o melhor presidente que a TAM poderia ter, imagina quando em outra empresa o CEO vai à meia noite conversar com os mecânicos para assistir eles trabalhar nos aviões e ali ficar compreendendo os problemas. O Comandante Rolim nasceu para a aviação, gostava tudo que fosse relativo a ela e principalmente amava pilotar uma aeronave. Se o Comandante Rolim não tivesse falecido acredito que a TAM teria comprado a LAM.
A TAM no início era muito desorganizada, de forma geral todos os setores. Quando os Bandeirantes chegaram da VASP, eles voavam todo o dia e a noite também fazendo serviço aéreo e cargueiro. Era uma coisa de doido. Era um tira e coloca assentos todos os dias. A empresa e o volume de trabalho cresceram muito. E muito rápido. E tiveram que admitir muitos profissionais mais rápido ainda. E numa ascensão rápida assim, as coisas acabam sendo desorganizadas. Não era possível organizar e planejar.
Com a entrada do Rolim na empresa as coisas aos poucos foram se arrumando. E depois se separaram em duas empresas, a Tam Marília que era a Táxi Aéreo e do outro lado a Tam Regional, que cresceu rapidamente e virou depois na TAM, que depois venho o Fokker 100. Se não fosse o Rolim jamais a TAM teria chegado ao nível que chegou, ele foi a pessoa que teve a competência e a coragem para fazer o que tinha que fazer.
O Comandante Rolim Amaro tinha uma bravura e vontade de investir ele tirou a empresa do nada que era um simples táxi aéreo e transformou a empresa que virou. Imagina um homem sem estudos, que morava numa casinha sem luz, que abandonou os estudos quando adolescente construir uma empresa gigante com dezenas de aviões Airbus voando para todas as capitais brasileiras e atravessando países mundo afora. Esse homem morreu na hora errada.
Foi uma época muito boa. A aviação de antigamente era muito boa. Era mais mecânico o negócio. Você realmente tinha que entender das coisas. Não tinha instrumentos para te apoiar. Ou você sabia ou não sabia. Ou servia para o negócio ou não servia. O nosso grupo de mecânicos era muito forte e respeitado na aviação. Na TAM éramos como uma família.
O salário não era o mais alto do mercado. Mas a gente se matava de trabalhar porque a gente amava tudo aquilo. Havia poucos profissionais no mercado. Éramos reconhecidos pelas nossas chefias e principalmente pelo Comandante Rolim. Eu posso dizer com toda humildade que dei muito sangue na TAM e digo isso com muita alegria e satisfação. E sou o que sou hoje, agradeço muito a TAM e a VASP.
A relação entre nós mecânicos sempre foi a melhor possível, até porque eu sempre fui o instrutor e supervisor de muitos. Mesmo depois de ter saído da TAM eu mantenho até hoje as mesmas amizades daqueles tempos. Muita gente entrou depois de mim evidentemente, até porque hoje a empresa tem mais de duzentos aviões e na minha época vinte e poucos. Críamos um vínculo de amizade muito grande e inclusive nos reunimos todos os finais de ano para relembrar os velhos tempos, as velhas histórias da TAM e tudo mais.
E quando tínhamos pouco serviço sobrava para os novatos. Então, brincadeira não faltava. Desde amarar eles com corda dentro dos aviões até que se soltassem. Tinham os ligeirinhos que em pouco tempo se livravam, mas outros levavam horas. E claro inventávamos nomes para ferramentas inexistentes e mandávamos para a ferramentaria buscar. E o pessoal de lá já sabia que era tudo gozação. As vezes jogávamos bola dentro do galpão de suprimentos que era nos fundos do hangar e fomos pegos em fragrante pelo comandante Rolim. Deu uma bronca e acabou.
Para explicar um pouco sobre a profissão de mecânico vamos comparar a de um automóvel. Por exemplo o tradicional Fusca que todos conhecem. Um mecânico do Fusca resolve todo e qualquer problema do carro, na maioria das vezes nem teve curso nenhum. Isso comparando com a minha época. Claro que nos dias de hoje as coisas são diferentes. Hoje para trabalhar numa concessionária as exigências são outras, formação e qualificação, além de experiência na função.
Além dos automóveis modernos que são totalmente eletrônicos, o que quer dizer que os mecânicos de outrora tem dificuldade para colocar a mão nos carros modernos de hoje. Mas voltando ao Fusca a maioria dos profissionais não tinham certificação alguma na maioria das oficinas mecânicas espalhadas pelo Brasil. Mas para mecânicos de aviões a coisa sempre foi diferente. Tanto ontem e hoje sempre se exigiu habilitação, treinamento específico e certificação do profissional. Ou seja, são exigidas licenças certificadas para trabalhar nas aeronaves.
A mecânica da aviação é dividida em três grupos de formação, sendo: Moto Propulsor, Célula Hidráulica, e o Grupo Elétrico e Eletrônico. Com a evolução da tecnologia e dos aviões cada vez mais a certificação está mais exigida em termos de conhecimentos por parte dos que pretendem ingressar nesse mercado.
Onde além de realizarem cursos de qualificação rígidos de formação com avaliações, também precisam passar por avaliação de provas perante a ANAC. Tudo isto em virtude que mecânico aeronáutico além de ser responsável pela correta manutenção da aeronave, indiretamente também é responsável pela segurança do voo e por inúmeras vidas em caso de sua falha.
O curso de mecânico aeronáutico para muitos é mais difícil que passar num vestibular, com mais de mil horas de estudos. E como já expliquei são três especialidades que vou detalhar um pouco mais a seguir:
Grupo Moto Propulsor: fornece conhecimentos sobre todos os tipos de motores de aviação geral, todos os sistemas de hélices e rotores.
Grupo Célula: fornece conhecimentos para todos os sistemas de pressurização, ar-condicionado, pneumático, sistemas hidráulicos, além da parte de fuselagem de aviões e helicópteros em geral.
Grupo Elétrico e Eletrônico (Aviônicos): fornece conhecimentos em todos os componentes elétricos e eletrônicos de aeronave, inclusive instrumentos de navegação, rádio navegação e rádio comunicação, sistemas elétricos e de radar.
Na minha época cada profissional trabalhava em apenas num dos grupos, mesmo que tivesse formação em mais de um. Mas todos os colaboradores trabalhavam de forma coordenada, principalmente quando ocorria uma manutenção geral que envolvia todas as áreas que poderiam ser além dos três grupos que citei, poderia também entrar os pintores, chapeadores, tapeceiros. Era um enxame de pessoas no avião, cada um fazendo o seu trabalho sincronizado com o dos colegas.
Depois que sai da TAM voei como piloto para mais de sessenta países. Morei dois anos na Nigéria, depois na Irlanda e Portugal. Voei basicamente para todos os estados do Canadá e dos Estados Unidos, toda América Centra e América do Sul, Europa, Polo Norte.
Transladei um Learjet de Amsterdã até Recife sem equipamento de rádio e tive que dar a volta pela Groelândia e descer pelos Estados Unidos dando trinta horas de voo. Cheguei até a experimentar o garimpo, mas foi muito pouco mesmo, pois como essa experiência de manutenção me favoreceu muito na minha vida profissional na aviação e isso fez meu nome e impulsionou minha carreira de piloto executivo.
Estou completando 72 anos de idade. Realizei meu grande sonho de ser piloto. De dever cumprido e continuo voando e quero voar. Sempre tive uma ótima relação com todos meus colegas. Casei com a Leila, tenho uma esposa maravilhosa e três filhos espetaculares. Meu filho Maicon também é piloto e chegou a ser Comandante do Airbus A-320 da TAM e minha filha Tatiana que hoje reside na Espanha chegou a ser comissária da TAM. E tenho também o Caio mora em Barcelona e trabalha com internet. Enfim, sou uma pessoa realizada e feliz.